Um desastre ambiental que revela o desastre moral e institucional do Brasil
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro (*)
Foto: Gabriel Lordelo
A lama da Samarco, mineradora controlada pela Vale e BHP Bilinton, rompeu uma barragem, soterrou um distrito, enlameou várias cidades, matou um rio, atingiu o litoral e ainda tinge o Oceano Atlântico…
No caminho, da barragem rompida até o mar, a lama da Samarco enlameou paisagens, vilas, cidades, rios, vales, corpos…
Também enlameou governos, órgãos de regulação e fiscalização, políticas públicas, partidos políticos, políticos de carreira, políticos sem carreira, políticos sem partido, causas ambientais, ambientalistas sem causa, imagens corporativas, currículos profissionais, mídias midiáticas, midiáticos sem mídia, julgadores e juízos, juizados sem causa, autoritários sem autoridade, outras autoridades e várias credibilidades.
A lama da Samarco, decididamente, é a lama do Brasil.
A lama da Samarco matou pessoas, matou animais, liquidou ecossistemas, destruiu floras, riscou do mapa famílias, propriedades, pequenas e grandes economias. Enxovalhou a vida nos estuários e corais.
A lama da Samarco liquidou a Bacia do Rio Doce, a quinta maior bacia hidrográfica brasileira, que abrange dois Estados, Minas Gerais e Espírito Santo, e tem tamanho equivalente a vários países da Europa, área de 83.400 km². Todo esse mundo deságua no Oceano Atlântico. A grandeza territorial, no entanto, revelou-se administrada por pigmeus.
A lama da Samarco demonstrou o quanto pode ser pernicioso o financiamento privado de campanhas eleitorais. O quanto a dependência orçamentária de um contribuinte privado faz a administração pública se ajoelhar. O quão perverso é o financiamento público a lucros privados. O tamanho da miséria humana que não se corrige com dinheiro.
A vida de crianças, velhos, pais e mães de família – foi sepultada pelo silêncio cúmplice de lideranças que não poderiam – até mesmo pela posição que ocupam no cenário nacional – se calar, e mesmo assim covardemente o fizeram.
A lama da Samarco revelou a incompetência nacional – a falta de profissionalismo público e privado. A grande arrogância de gente extremamente pequena.
A lama da Samarco marca cada moeda entregue aos pressurosos acionistas, preservados completamente pela ausência absoluta de responsabilização. No fim, recuperam as “perdas financeiras”, reduzindo os danos a quem de forma alguma lhes interessa…
Restou uma sensação de absoluta impunidade no ar, e de desesperança e desamparo, na lama e fora dela.
Doeu ver a lama descer o rio – por horas, dias, semanas… sem que governos mobilizassem sua engenharia, seus contingentes de homens e máquinas, para obstruir seu caminho, reduzi-la, derivá-la, barrá-la, sedimentá-la… com, obras, valas, homens, suor, vontade e vergonha na cara.
Como velho profissional. Tenho a mesma sensação que foi partilhada por outro experiente profissional com o qual já trabalhei – o biólogo Mário Moscatelli, que tudo o que fizemos e ainda fazemos, em prol da melhoria da performance na resolução de crises ambientais, não foi e não é registrado pelas gerações de profissionais que se seguem.
Estaríamos diante de uma geração de seres absolutamente incapazes de aprender com a experiência passada, com a experiência alheia e até mesmo com a própria? Se positiva a resposta, não há outra classificação possível: na lama da Samarco também chafurdam idiotas, desmemoriados, imbecis, arrogantes e incompetentes.
Afundam na lama da Samarco as economias pessoais, economias locais, economias regionais, circuitos econômicos e a macroeconomia de toda uma bacia. Está na lama, até mesmo a economia do litoral.
Na lama da Samarco, o judiciário demonstrou a que veio: para nada! Lenta, hesitante, despreparada, desaparelhada – a justiça tardou, tarda e falha.
Magistrados, advogados, promotores, procuradores, peritos e interessados se engalfinham sem nada resolver. Pouco contribuíram para a “Administração da Justiça” – protelam, adiam, dissimulam, ajustam termos de ajuste para ajustar os ajustes a termo ajustáveis. Vergonha… vergonha… vergonha…
Multas, valores, tempo, modo e condições de cumprimento de obrigações… passíveis de serem emergencialmente acertados, ainda quando a pluma de poluição estava circunscrita às primeiras cidades mineiras, aguardaram fins de semana, feriados, expedientes forenses, disponibilização de helicópteros, entrevistas na mídia… chicanas e firulas proselitistas… até que, como a lama da Samarco, desaguaram no oceano das desilusões, afogando a credibilidade do direito ambiental brasileiro.
A engenharia nacional, da mesma forma que o Direito, protagonizou outro papelão. Boias de contenção de óleo apostas para conter coluna de lama diluída na água turva… como mostrado em fotos e vídeos na TV, deveria ser caso para processo administrativo no Conselho Regional de Engenharia…
A ausência de planos eficazes de contingência, de emergência, de defesa civil, de resgate de fauna, ictiofauna, flora, prevenção e proteção de fontes e mananciais, e descuido em relação aos vetores que levam a epidemias, revelou algo já sentíramos na copa do mundo: tiramos onda; mas quando o jogo é pra valer, tomamos de sete…
A cidadania tomou de goleada, da poluição, da burocracia e dos poluidores. Conferimos a eles o premio da impunidade.
Quanto aos mortos – desaparecidos – permanecerão na cova quilométrica, vermelha e cimentada, só removida por britadeira, após seca.
A lama da Samarco é a lama que nos cobre a todos de vergonha no Brasil. Um Brasil cujos governos matam, por incúria, sessenta mil pessoas por ano – vítimas da criminalidade, enquanto militantes se solidarizam seletivamente com mortes convenientes escolhidas a dedo pelos ideólogos de plantão.
Choramos, todos, pelos danos ambientais ocorridos com o desastre de Mariana, enquanto verbas que deveriam ser dedicadas ao socorro das vítimas, pagavam manifestação de solidariedade às mineradoras envolvidas na lama, com apoio de autoridades locais.
Assistimos a eventos carregados de pompa, egocentrismos e vaidades, lotarem Resorts e centros de convenções, com gente perfumada e engravatada, deslumbrada consigo própria, para falar de justiça, de meio ambiente… sem que um mísero janota daqueles pisasse na lama da Samarco, para estender a mão a uma vítima do desastre.
Que o fizessem, alguma vez, com coragem e competência… seria pedir demais.
Formamos profissionais que querem ganhar dinheiro com direito, engenharia e gestão ambiental, sem procurar, antes, aprender a trabalhar… e a se solidarizar.
Acreditavam os portugueses, ao direcionarem o esgoto das cidades coloniais para os rios, que invariavelmente passavam “nos fundos” das casas, que “a água a tudo lava, a tudo leva”…
O resultado dessa crença, todos nós testemunhamos hoje.
A lama nada lava, nada leva. Atola, afoga, conspurca e abodega.
A lama da Samarco não é causa – é resultado do rompimento de várias barragens, a começar pela da moralidade.
Com o rompimento das barragens que protegem a integridade do Brasil, a lama evoluiu. Hoje, vários rejeitos ocupam o cenário nacional, e contaminam todo o ambiente brasileiro.
Como disse outro velho amigo e professor, o antropólogo Mauro Cherobin: o Rio Doce prova o amargo de nossa triste realidade.
A lama da Samarco é a lama do Brasil: é o estado da arte do grande desastre…
(*) Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). É Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal,
Abiente legal.com.br
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